EspÃrito patriótico e ±è´Ç±ôóپ±³¦²¹ (censurada) da memória na ¸éú²õ²õ¾±²¹ putiniana
Por Pe. Stefano Caprio*
Em janeiro deste ano, foi publicado na Rússia o livro "Em busca da antiguidade russa", escrito pelo historiador Konstantin Pakhaljuk, de 36 anos, que, após uma brilhante carreira em diversas universidades russas e internacionais, acabou sendo rotulado de "agente estrangeiro" e forçado a fugir para Israel. O livro foi imediatamente retirado de circulação após ser denunciado pelo movimento ultraconservador "Quarenta Quarentenas", em meio a uma censura cada vez mais rigorosa a qualquer publicação que não estivesse em conformidade com a política estatal e a proclamação de "valores tradicionais".
Neste caso específico, o livro foi acusado de "ofensa sacrílega à nossa Pátria", mas alguns exemplares chegaram às bibliotecas de Moscou e, como nos tempos soviéticos, está sendo distribuído em formato samizdat, não mais recopiado a lápis por baixo dos panos, mas filmado com a câmera de um celular. O "sacrilégio" do autor russo-israelense consiste, na verdade, na tentativa de esclarecer questões em aberto sobre a verdadeira identidade russa, para além das declarações formais e pomposas que foram frequentemente repetidas no recente aniversário do Batismo da Rus' de Kiev.
Uma questão crucial diz respeito à "política da memória" na província, nas cem regiões da Federação Russa onde vivem duzentas etnias, grandes, pequenas ou muito reduzidas. O que, na verdade, "recordam" as regiões da "grande história russa", e até que ponto se identificam com ela? Quanto da "russidade" realmente depende da "antiguidade russa"?
Não sem uma boa dose de ironia, Pakhaljuk observa que os atuais "Z-patriotas", os apoiadores da guerra da Rússia contra o mundo inteiro, não são muito propensos em se aprofundar em questões do passado para evitar incertezas e contradições e, portanto, essa tarefa deve ser assumida por um "agente estrangeiro", mais livre de preconceitos e esquemas mentais.
O olhar do historiador sobre o "neomedievalismo" russo não pretende ser meramente um "retorno ao passado", deixando-se arrastar pela nostalgia e modelos idealizados em busca das próprias raízes. Konstantin pretende ampliar a perspectiva, oferecendo uma visão "descentralizada" da história russa que leve em consideração diversos fatores, um aspecto particularmente importante no contexto dos eventos atuais. Um dos elementos que estimula muito a sensibilidade, quer dos líderes quanto como das diversas populações locais, é a ascensão de um nacionalismo russo radical, em contraste com os diversos nacionalismos étnicos minoritários, que se expressam em diversas formas.
Pakhaljuk, no entanto, não pretende comparar russos étnicos com outros, mas concentra-se precisamente no nível de "russianidade" das próprias regiões russas, como as 12 regiões da Rússia central além de Moscou: Smolensk, Ryazan, Veliky Novgorod, Tver, Vladimir, Bryansk, Ivanovo, Kaluga, Orel, Kostroma, Tula e Yaroslavl. Qual delas é a mais russa, considerando que Moscou surgiu depois de quase todas as outras?
O mesmo atributo de "russo" é colocado ao lado de figuras sociais, profissionais ou religiosas: o camponês russo, o comerciante russo, o nobre russo ou o russo ortodoxo. Muitas dessas definições referem-se especificamente ao território, às histórias de cidades e principados, e aos objetos e estruturas que expressam a alma russa, dos vários Kremlins aos ícones sagrados. No entanto, é como se precisamente o "homem russo" escapasse à classificação.
Grande parte dessa memória foi apagada sob o "jugo soviético" do século XX, e qualquer tentativa de restaurá-la parece um tanto confusa e artificial. Tanto que, na retórica estatal, a "identidade russa" parece se sobrepor principalmente à "identidade soviética", como no caso do próprio czar-presidente e ex-chefe da KGB, Vladimir Putin, e até mesmo do patriarca Kirill (Gundyaev), ele próprio um notório ex-agente da KGB, a qual frequentemente parece se inspirar, ao invés das tradições eclesiásticas e litúrgicas.
Frequentemente são exaltadas nas reconstruções históricas as figuras das províncias que se distinguiram em nível nacional (soviético, federal), como os grandes nomes da revolução, Vladimir Lenin, que veio da burguesia sulista de Simbirsk, sem mencionar o judeu ucraniano Leon Trotsky ou o georgiano Joseph Stalin. No final das contas, os czares Romanov haviam perdido a pureza genética russa desde o século XVIII, e o último imperador, Nicolau II, tinha menos de um décimo de sangue russo.
Nesta retrospectiva, a identidade russa aparece como uma forma de provincianismo, dada a diversidade étnica de seus heróis, cujo último verdadeiro russo das profundezas da Sibéria foi o monge autodenominado às alturas do espírito, Grigory Rasputin, cujo sobrenome significa "encruzilhada dos caminhos" e a quem se liga o atual líder, Vladimir Putin, "homem da rua". Precisamente por isso, um dos objetivos ideológicos da atual liderança do Kremlin é incutir na população uma verdadeira "consciência russa universal", superando as divisões e o sentimento de marginalização típicos de um povo disperso por um território sempre repleto de perigos, a menos que o domine com uma projeção ainda mais vasta e sem fronteiras. O "verdadeiro russo" não tolera ser excluído ou marginalizado; ele precisa se sentir sempre "no centro".
Na última década, mais de cem museus locais foram abertos na Rússia, dedicados não apenas à retórica de guerra e aos heróis militares locais, mas também ao desejo de "associar-se à antiguidade russa", reiterando em nível regional o desejo de superar a insignificância nacional, federal e global, até mesmo recorrendo a algumas citações vagas em manuscritos das crônicas mais antigas.
A cidade de Pskov, no noroeste, onde à frente da Igreja até dois anos atrás estava o "historiador imperial" Tikhon (Å evkunov), atualmente metropolita da Crimeia, exalta sua história de 1.100 anos, que começou mais de cinquenta anos antes do Batismo de Kiev, baseando-se em uma citação passageira da Crônica de Nestor, que afirma que a princesa Olga, avó de Vladimir, o Grande, era proveniente de Pleskova, identificada com a região de Pskov. Ou a cidade de Yaroslavl, na Rússia central, onde vive mais de meio milhão de pessoas, é baseada na lenda do príncipe Yaroslav, o Sábio, filho de Vladimir, que derrotou um urso com as próprias mãos.
Essas histórias arcaicas e fantasiosas, na verdade, não correspondem ao desenvolvimento real dessas cidades e regiões, cuja atividade e presença histórica remontam, no máximo, a 500-600 anos, pouco mais da metade do "milênio cristão".
Moscou começou a se afirmar após 1300 e tornou-se um centro imperial sob Ivan, o Terrível, em meados do século XVI, quando, não por acaso, se disseminou a ideologia da "Terceira Roma". Precisamente essa definição, talvez a mais simbólica do que se entende por "identidade russa", indica o desejo de remontar à história antiga até os impérios mais gloriosos, evidenciando o complexo de inferioridade e o ressentimento contínuo dos russos por terem chegado à cena tarde demais.
Como afirma Pakhaljuk, a "antiguização artificial" é a verdadeira chave de leitura dos russos de hoje, mas também dos séculos anteriores: o desejo de ser os primeiros, os mais "tradicionais" e originais dos grandes valores da história, sem querer admitir ter recebido tudo dos outros, seja do Ocidente como do Oriente.
Dessa forma, se esvazia de significado também a verdadeira antiguidade da Rússia, testemunhada por importantes monumentos arquitetônicos como na grande Novgorod, em Pskov e em Vladimir, ou diante do esplêndido Kremlin de Nižnij Novgorod, com vista para o Volga, em alguns aspectos ainda mais espetacular do aquele construído às margens do rio Moscou, na capital, no final do século XV.
Não são necessários os "mitos dourados" para compreender verdadeiramente o valor desses testemunhos históricos, sem mencionar igrejas e catedrais que datam do início do segundo milênio, ou aquelas erguidas em Moscou, imitando palácios venezianos por arquitetos e operários italianos. A verdadeira identidade histórica é compreendida nas relações entre os muitos centros provinciais, desde aqueles na parte europeia mais antiga até as cidades asiáticas da Sibéria, com a dimensão imperial igualmente mutável, do antigo principado de Kiev (já então a maior nação da Europa) a Moscou–Terceira Roma e ao império de São Petersburgo, imitação das capitais europeias mais prestigiosas.
Em todos os museus locais, e nas narrativas sobrepostas da propaganda, dissemina-se o culto à "Rússia-que-perdemos", sublimando, junto com eras distantes, a nostalgia pela grandeza soviética, o verdadeiro fundamento da consciência dos russos atuais. E isso considerando que precisamente a revolução bolchevique foi um fenômeno de apagamento da memória, em nome de uma "ideologia importada do Ocidente", como sempre recorda o patriarca de Moscou Kirill (Gundyaev). O retorno ao passado é o conteúdo fundamental do espírito patriótico, que justifica a repressão contra "agentes estrangeiros" e a guerra contra a destruição de "valores tradicionais", para exaltar um mundo russo que talvez nunca tenha existido, pelo menos não como é contado aos próprios infantis cidadãos nas histórias de ninar da propaganda de Estado.
*Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro "Lo Czar di vetro. La Russia di Putin". (O presente artigo foi publicado pela Agência AsiaNews)
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