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Leão XIII, a “Colecta da Epifania” e a luta anti-esclavagista em Áڰ

O nome Leão XIV adoptado pelo novo Papa suscita muito interesse pelo seu antecessor Leão XIII, cuja encíclica Rerum Novarum é muito citada por ter lançado as bases da Doutrina Social da Igreja. Este Pontífice, no entanto, tem outras duas encíclicas que merecem grande atenção pelo seu contributo para a luta contra a escravatura em Áڰ. Trata-se de In Plurimis e Catholicae Ecclesiae, como observa a historiadora belga Élisabeth Bruyère.

Stanislas Kambashi, SJ – Cidade do Vaticano

In Plurimis (1888) e Catholicae Ecclesiae (1890) são as duas encíclicas de Leão XIII que deram grande impulso à luta contra a escravatura. A primeira, voltada para a luta abolicionista, dirigia-se particularmente aos bispos do Brasil. O Pontífice demonstra que a escravatura é contrária à doutrina cristã. A segunda, “com um maior alcance jurídico”, estabelecia “uma colecta obrigatória para os escravos africanos”, explica Elisabeth Bruyère, doutorada em direito e investigadora em história contemporânea na Universidade de Lovaina, na Bélgica.

O papel crucial do Cardeal Lavigerie

Foi graças ao contacto com o Cardeal Charles Martial Lavigerie, que testemunhou os mercados de escravos do Norte de África, que Leão XIII se envolveu na luta anti-esclavagista, refere a historiadora. O prelado francês fundou em 1868 a Sociedade dos Missionários de África (Padres Brancos) e, um ano depois, a Congregação das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora de África (Irmãs Brancas).

Enviados em missão no centro de África, os Padres Brancos também foram testemunhas da escravatura, "escravatura de incursões, capturas, verdadeiras caçadas humanas e, por conseguinte, mercado humano". “Estas histórias realmente comoveram o Papa. Isso é evidente nos documentos que escreveu sobre o assunto. Portanto, a sua visão do continente africano vai ser muito estereotipada", observa Bruyère. Na sua carta ao Arcebispo de Colónia, em 1890, fala de "povos infelizes", "povos feridos pela barbárie e pela abjecção do vício" e "miseráveis africanos". Para a investigadora, esta visão do povo africano permanecerá nas mentalidades europeias como "um povo miserável".

O Cardeal Lavigerie organizará uma campanha de sensibilização pela Europa para difundir o espírito anti-esclavagista através de conferências, "o que será uma verdadeira bênção para os governos imperialistas, pois encontrarão aí uma justificação para a expansão colonial ... para libertar os africanos da escravatura".

A “Colecta da Epifania”

Para combater a escravatura e sob o impulso do Cardeal Lavigerie, com a encíclica Catholicae Ecclesiae, Leão XIII instituiu em 1890, na Europa e noutros lugares, uma coleta obrigatória, no Domingo da Epifania, destinada ao continente africano. Denominada "subsídio anti-esclavagista" ou "Colecta da Epifania", todas as paróquias, através das dioceses, deveriam canalizar o dinheiro para a Congregação para a Propagação da Fé - Propaganda Fide - agora Dicastério para a Evangelização.

A congregação fazia então a distribuição pelas diferentes missões ou circunscrições eclesiásticas na África Subsariana, com exceção daquelas que não se enquadravam no âmbito da Propaganda Fide, como os países africanos de língua portuguesa. É também importante destacar que, por vezes, solicitavam e recebiam fundos do mesmo Dicastério. Calculando os valores através dos arquivos, a historiadora estima em 50 milhões de liras as somas recolhidas no período de 1920 a 1939, o que corresponde a 70 milhões de euros.

Élisabeth Bruyère, investigadora em história contemporânea na Universidade de Lovaina, na Bélgica
Élisabeth Bruyère, investigadora em história contemporânea na Universidade de Lovaina, na Bélgica

“Redimir os escravos” para “salvar as almas”

Num primeiro momento, do final do século XIX ao início do século XX, o dinheiro servia principalmente para comprar escravos nos mercados de escravos, diz Bruyère. Os missionários iam a estes mercados comprar escravos, neste caso crianças, que podiam "custar menos", a fim de "salvar mais almas". Com a ocupação colonial e imperialista europeia do continente africano, este mercado tenderá gradualmente a desaparecer, sem, contudo, ser totalmente erradicado. De facto, embora o tráfico público tenha sido abolido, continuariam a existir mercados clandestinos.  Os impérios coloniais introduziriam outros tipos de exploração, como por exemplo o trabalho forçado.

Enfrentar a servilidade doméstica

À medida que os mercados de escravos começavam a desaparecer, os missionários voltaram a sua atenção para outro fenómeno: a servidão doméstica ou "escravatura doméstica ou local". Também resgatarão muitas pessoas escravizadas e fundarão orfanatos, na esperança de criar lares cristãos e depois estabelecer aldeias cristãs. Colocadas sob a autoridade dos missionários, estas aldeias eram vistas de forma desfavorável pelas autoridades coloniais, que sentiam que estavam em competição. Foram depois gradualmente abandonadas pelos missionários, que perceberam que evangelizar a maioria da sociedade, concentrando-se exclusivamente nos "deserdados" não incentivava necessariamente as classes mais privilegiadas a aderir à religião católica, explica a investigadora.

De escravos a evangelistas

Com o declínio das práticas esclavagistas, os recursos provenientes da compra de escravos serão direcionados para o financiamento das obras missionárias. Os subsídios serão usados ​​para financiar as missões, pagando o imposto dos catequistas ou financiando os seus salários, comprando medicamentos para dispensários, abrindo escolas, ajudando a estabelecer congregações locais, construindo edifícios para as missões ou provendo as necessidades das missões, etc.

As pessoas libertadas da escravatura, incluindo crianças, foram o “primeiro viveiro dos convertidos à fé católica” e viriam a ser os primeiros catequistas. A historiadora sublinha que o papel dos catequistas na evangelização em África é crucial, embora muitas vezes "pouco mencionado", lamenta. Em termos de números, ela refere que em 1940 existiam 10.000 catequistas no que constituía a África Belga (Congo-Ruanda-Urundi). "Eram eles que faziam o trabalho de base, eram eles a força de trabalho dos missionários".

Mais investigação e estudos aprofundados

Elisabeth Bruyère acredita que ainda há muito espaço para a investigação sobre o tema da acção anti-esclavagista da Propaganda Fide e, especialmente, sobre a utilização dos subsídios, que continuaram a ser enviados para missões africanas até ao final da década de 1950. Os missionários enviavam relatórios à Congregação para explicar como utilizavam o dinheiro recebido. Estes relatórios são "legião" e merecem ser aprofundados.

A historiadora belga menciona um dos seus artigos escritos sobre o tema: "Da luta contra o tráfico de escravos ao apoio à ação social nas missões africanas: uma breve história da colecta da Epifania". Ela acredita que também podemos refletir sobre “o papel dos missionários como pessoas que redimiam pessoas reduzidas à escravatura”, o seu papel nas aldeias cristãs, a sua posição social em relação aos antigos escravos, a forma como eram vistos pelas sociedades locais, pois por vezes eram considerados como novos proprietários de escravos.

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21 maio 2025, 12:00