Aquele "espa?o vivo e fecundo" entre a literatura e o leitor
De Katie Kitamura
Há muitos aspectos marcantes na carta do Papa Francisco sobre literatura, dentre eles o próprio fato de ela existir. Esta longa reflexão sobre os usos da literatura, feita por uma figura de sua estatura moral e intelectual, enquadra o lamento comum dos escritores em relação à marginalização cultural da literatura. O Papa Francisco nos lembra que o poder da literatura não se mede em números, muito menos em termos de alcance. Pelo contrário, seu verdadeiro alcance é íntimo e introspectivo.
A carta explica com impressionante precisão como um texto ¡ª qualquer texto, mas especialmente um texto literário ¡ª existe no mundo. Um romance, um poema ou um conto podem mudar infinitamente, mesmo quando as palavras na página permanecem as mesmas. O Papa Francisco escreve: o leitor "de alguma forma reescreve a obra, amplifica-a com sua imaginação, cria um mundo, usa suas habilidades, sua memória, seus sonhos, sua própria história". Nenhum texto é definido. Em vez disso, ele existe no espaço entre o autor e o leitor.
Um texto literário, na melhor das hipóteses, é "vivo e sempre fecundo", segundo a descrição do Papa Francisco, "capaz de falar novamente em vários modos e produzir uma síntese original com cada leitor que encontra". Esta é talvez uma das descrições mais profundas e confiantes da capacidade da literatura, e sugere que seu poder reside na mutualidade. A leitura não é retratada como um meio de transmissão do autor para o leitor, mas sim como um ato de compromisso fundamental e colaboração: uma forma de contato autêntico, uma negociação entre duas mentes.
Como autora, sinto-me muito desconfortável com a autoridade conferida ao escritor. Não tenho interesse em dizer ao leitor o que sentir ou acreditar. Não quero controlar a experiência do leitor. Acredito que esse conceito de poder esteja longe de ser útil para qualquer esforço literário. Em vez disso, procurei pensar em escrever um romance como a construção de uma estrutura grande o suficiente para acomodar tanto o leitor quanto o escritor. Às vezes, isso significa ocupar um pouco menos de espaço como autor.
A literatura não é simplesmente um reflexo do mundo, o stendhaliano (relativo ao escritor francês Stendhal) "espelho levado por uma estrada". O romance reflete o mundo, mas também reflete as particularidades do leitor. Como escreve o Papa Francisco, graças ao ato de ler, "o leitor é envolvido em primeira pessoa como 'sujeito' da leitura e, ao mesmo tempo, como 'objeto' daquilo que lê. Ao ler um romance ou uma obra poética, o leitor vive, na realidade, a experiência de 'ser lido' pelas palavras que lê". Este é o poder da literatura: ela nos permite ver não apenas o mundo, mas também a nós mesmos e, ao ver essas duas coisas juntas, compreender também como interagimos com o mundo.
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