De Lampedusa ¨¤ Covid-19, o Papa e o desafio da fraternidade
Alessandro Gisotti
"¡¯Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim¡¯, diz o Senhor Deus. Essa não é uma pergunta dirigida aos outros, é uma pergunta dirigida a mim, a ti, a cada um de nós". Já se passaram sete anos da visita do Papa Francisco a Lampedusa e daquela pergunta dirigida à humanidade na missa celebrada no campo esportivo da ilha, no coração do Mediterrâneo.
Uma viagem que durou apenas algumas horas, mas que foi de alguma forma "programática" para o Pontificado. Ali, na ponta sul da Europa, Francisco mostrou o que entende quando fala de "Igreja em saída". Ele tornou visível a afirmação de que a realidade pode ser vista melhor a partir das periferias do que a partir do centro. Em meio aos migrantes que fugiram da guerra e da miséria, ele mostrou concretamente o seu sonho de uma "Igreja pobre e para os pobres". Em Lampedusa, por outro lado, falando de Caim e Abel, também colocou a questão da fraternidade em primeiro plano. Um questionamento fundamental para o nosso tempo. Ou talvez, de todos os tempos.
Sobre o eixo da fraternidade gira todo o Pontificado de Francisco. "Irmãos" é precisamente a primeira palavra que ele dirigiu ao mundo como Papa na noite de 13 de março de 2013. A dimensão da fraternidade está, se assim se pode dizer, no DNA deste Pontífice que escolheu o nome do Pobrezinho de Assis, um homem que queria para si, como único título, aquele de ¡°frate¡±, frater, irmão precisamente.
Fraterno é também o modo como define a sua relação com o Papa emérito Bento XVI. Após a assinatura da Declaração sobre a Fraternidade Humana, esse valor do Pontificado certamente aparece mais marcado e evidente a todos. No entanto, voltando aos primeiros sete anos de Pontificado de Francisco, encontramos vários marcos no caminho que levou à assinatura, juntamente com o Grande Imã de Al Azhar, do documento histórico em Abu Dhabi, em 4 de fevereiro de 2019. Um caminho que agora continua, porque aquele evento em solo árabe foi um ponto de chegada, certamente, mas também de um novo começo.
Voltando à "questão de Lampedusa", é particularmente significativo que o Papa retome as mesmas palavras em uma outra visita altamente simbólica, aquela que faz ao Sacrário Militar de Redipuglia, no centenário do início da I Guerra Mundial. Também aqui, em setembro de 2014, o diálogo entre Deus e Caim, após a morte do irmão Abel, volta a ressoar com todo o seu drama. "Não sei. Acaso sou o guarda do meu irmão"? (Gn 4,9). Para Francisco, naquela recusa de se sentir o guardião do irmão, de cada irmão, está a raiz de todos os males que abalam a humanidade. Essa atitude, enfatiza o Papa, "é exatamente o oposto do que Jesus nos pede no Evangelho", "Aquele que cuida de seu irmão, entra na alegria do Senhor; aquele que não o faz, com as suas omissões diz: 'O que me importa?¡¯, fica de fora¡±.
Com a passagem do Pontificado, vemos que a pertença comum à fraternidade humana é declinada em todo o seu dinamismo multiforme, desde o ecumênico ao inter-religioso, da dimensão social àquela política. Mais uma vez o poliedro é a figura que melhor representa o pensamento e a ação de Francisco. A fraternidade, de fato, tem muitas facetas. Tantas quantas forem os homens e as relações entre eles.
Francisco fala de irmãos no encontro de oração e de paz nos Jardins do Vaticano com Shimon Peres e Abu Mazen. "A vossa presença", enfatiza ao se dirigir ao líder israelense e aquele palestino, "é um grande sinal de fraternidade, que cumprem como filhos de Abraão, e uma expressão concreta de confiança em Deus, Senhor da história, que hoje nos olha como irmãos, uns dos outros, e deseja nos conduzir em seu caminho".
Em nome da fraternidade, animada pela fé comum em Cristo, há também o encontro, impensável até poucos anos antes, do bispo de Roma com o Patriarca de Moscou, um evento abençoado pelo Patriarca de Constantinopla, o irmão Bartolomeu I. Em Cuba, Francisco e Kirill assinam um documento comum que, em suas palavras iniciais, enfatiza: "Com alegria, nos encontramos como irmãos na fé cristã, que se encontram para 'falar de viva voz".
Fraternidade é também a palavra-chave que nos permite decodificar um dos atos mais fortes e surpreendentes do Pontificado: o gesto de se ajoelhar para beijar os pés dos líderes do Sudão do Sul convocados ao Vaticano para um retiro espiritual e de paz. "Aos três, que assinaram o Acordo de Paz¡±, diz o Papa com palavras sinceras, ¡°peço-lhes, como irmão, que permaneçam na paz. Eu lhes peço de coração. Vamos adiante".
Portanto, se a Declaração de Abu Dhabi foi como a floração de sementes plantadas no início e, depois, durante todo o Pontificado, certamente a "mudança de época" que estamos vivendo, acelerada pela pandemia, torna improrrogável assumir a responsabilidade em relação à questão da fraternidade humana. "Onde está o teu irmão?" Aquela pergunta-apelo, levantada na ensolarada manhã de 8 de julho de 2013 em Lampedusa, é hoje "a" questão.
O mundo, convencido de poder fazer sozinho, de poder ir adiante com a lógica egoísta do "sempre se fez assim", ao invés disso, se viu no chão, incrédulo e impotente diante de um inimigo invisível e esquivo. E agora luta para se levantar porque não encontra a base correta para se sustentar. Essa base, nos repete Francisco, é a fraternidade. Ali estão as únicas bases sobre as quais construir uma casa sólida para a humanidade.
O coronavírus mostrou dramaticamente que não importa quão diferentes sejam os níveis de desenvolvimento entre as nações e a renda dentro das nações, todos nós somos vulneráveis. Somos irmãos no mesmo barco, abalados pelas ondas de uma tempestade que atinge todos e a cada um indiscriminadamente. "Com a tempestade¡±, afirma o , ¡°caiu a maquiagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso 'eu', sempre preocupado com a própria imagem; e ficou descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos".
Isso é o que pode despertar as nossas consciências um pouco anestesiadas diante das muitas "pandemias", como a guerra e a fome, que bateram às nossas portas, mas que não nos curamos, porque não conseguiram entrar em casa. "Há muitas outras pandemias que fazem as pessoas morrerem¡±, lembrou Francisco na missa na Santa Marta em 14 de maio, ¡°e nós não nos damos conta, olhamos para o outro lado¡±. Hoje, assim como há sete anos em Lampedusa, o Papa nos diz que não devemos olhar para o outro lado porque, se realmente nos sentimos irmãos, membros uns do outros, o outro lado não existe. O outro lado somos nós.
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