Texto integral da Primeira prega??o de Advento 2019
Primeira pregação do Advento 2019
Cada ano, a liturgia nos prepara ao Natal com três grandes guias: Isaías, João Batista e Maria; o profeta, o precursor, a mãe. O primeiro o anunciou de longe, o segundo o apontou presente no mundo, a mãe o trouxe no ventre. Para este Advento de 2019, pensei em nos confiar inteiramente à Mãe. Ninguém melhor do que ela pode nos predispor a celebrar o nascimento do Redentor. Ela não celebrou o Advento, viveu-o em sua carne; como toda mulher gestante, sabe o que significa estar ¡°à espera¡± e pode nos ajudar a viver este Advento com uma fé cheia de espera. Contemplaremos a Mãe de Deus nos três momentos nos quais a Escritura a apresenta no centro dos acontecimentos: a Anunciação, a Visitação e o Natal. Iniciemos com a Anunciação.
¡°Eis aqui a serva do Senhor...¡±
Quando Maria chegou à casa de Isabel, esta a acolheu com grande alegria e, ¡°cheia do Espírito Santo¡±, exclamou: Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu! (Lc 1,45). A grande coisa que aconteceu em Nazaré, depois da saudação do anjo, é que Maria acreditou e tornou-se assim ¡°Mãe do Senhor¡±. Não há nenhuma dúvida que este acreditar se refira à resposta de Maria ao anjo: Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,38).
Com estas poucas e simples palavras, realizou-se o maior e mais decisivo ato de fé na história do mundo. Esta palavra de Maria representa ¡°o cume de qualquer comportamento religioso perante Deus, porque expressa, da maneira mais elevada, a passiva disponibilidade unida à ativa prontidão, o vazio mais profundo acompanhado da maior plenitude¡±[1]. Com esta sua resposta ¨C escreve Orígenes ¨C é como se Maria dissesse a Deus: ¡°Eis-me aqui, sou uma tabuinha para escrever: o Escritor escreva o que quiser, faça de mim o que quiser o Senhor de todas as coisas¡±[2]. Ele compara Maria à tábua encerada que, no seu tempo, usava-se para escrever. Nós hoje poderíamos dizer que Maria se oferece a Deus como uma página em branco, na qual pode escrever tudo que quiser.
¡°Num instante, que nunca mais vai desaparecer e que permanece válido por toda a eternidade, a palavra de Maria foi a palavra da humanidade, e o seu ¡®sim¡¯ foi o Amém de toda a criação ao ¡®sim¡¯ de Deus¡± (K. Rahner). É como se, nela, Deus interpelasse de novo a liberdade criada, oferecendo-lhe uma possibilidade de resgate. Este é o sentido profundo do paralelismo Eva-Maria, caro aos Padres e a toda a tradição. ¡°O que Eva tinha atado com a sua incredulidade, Maria o desatou com a sua f顱[3].
Pelas palavras de Isabel: ¡°Bem-aventurada aquela que acreditou¡±, percebe-se como, já no Evangelho, a maternidade divina de Maria é entendida não só como maternidade física, mas muito mais como maternidade espiritual, fundada na fé. É nisso que se baseia Santo Agostinho quando escreve: ¡°A Virgem Maria, acreditando, deu à luz aquele que, acreditando, concebera... Depois que o anjo lhe falou, cheia de fé (fide plena), concebendo Cristo antes no coração do que no seio, ela respondeu: Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra¡±6. À plenitude da graça por parte de Deus, corresponde a plenitude da fé por parte de Maria; ao ¡°gratia plena¡±, o ¡°fide plena¡±.
Sozinha com Deus
À primeira vista, o ato de fé de Maria foi fácil e previsível. Tornar-se mãe de um rei que teria reinado eternamente sobre a casa de Jacó, a mãe do Messias! Era esse o sonho de toda menina judia! Mas esta é uma maneira de raciocinar muito humana e carnal. A verdadeira fé nunca é privilégio ou honra, mas é sempre como morrer um pouco, e isso foi sobretudo a fé de Maria neste momento. Em primeiro lugar, Deus jamais engana, nem arranca das criaturas seu consentimento de maneira sorrateira, escondendo-lhes as consequências que irão enfrentar. Percebemos isso em todas os grandes chamados de Deus. Preanuncia a Jeremias: Eles farão guerra contra ti (Jr 1,19), e diz a Ananias, a respeito de Saulo: Eu vou mostrar-lhe quanto ele deve sofrer por minha causa (At 9,16). Deus teria agido diferentemente só com Maria, para uma missão como a sua? À luz do Espírito Santo, que acompanha o chamado de Deus, ela certamente previu que também seu caminho não teria sido diferente daquele de todos os outros chamados. Afinal, Simeão, bem cedo, dará expressão a esse pressentimento, dizendo que uma espada lhe traspassará a alma.
Aliás, já no plano simplesmente humano, Maria vai se encontrar numa total solidão. Para quem pode explicar o que nela aconteceu? Quem nela acreditará, quando disser que o menino por ela concebido, é ¡°obra do Espírito Santo¡±? Isto nunca aconteceu antes dela, nem irá acontecer depois. Maria conhecia certamente o que estava escrito no livro da lei: se, por ocasião das núpcias, fosse constatado que a moça não era virgem, deveria ser levada à entrada da casa de seu pai para ser apedrejada pelos habitantes da cidade (cf. Dt 22,20ss).
Falamos hoje muitas vezes do risco da fé, pensando geralmente no risco intelectual; mas, para Maria, tratava-se de um risco real! Carlo Carretto, no seu livrinho sobre Nossa Senhora, conta como chegou a descobrir a fé de Maria. Quando ele vivia no deserto, alguns dos seus amigos Tuaregues informaram-no que uma moça do acampamento tinha sido prometida como esposa a um rapaz, mas, sendo ela jovem demais, não tinha ido morar com ele. Carlo Carretto comparou este fato com aquilo que Lucas diz a respeito de Maria. Por isso, passando de novo naquele mesmo acampamento, depois de dois anos, pediu informações sobre a moça. Percebeu um pouco de embaraço entre os seus interlocutores e, mais tarde, um deles, aproximando-se com toda a reserva, fez um sinal: passou uma mão na garganta, com o gesto característico dos árabes quando querem dizer: ¡°Foi degolada¡±. Como tinha sido encontrada grávida antes do matrimônio, a honra da família exigia aquele desfecho. Então, ele pensou novamente em Maria, nos olhares impiedosos dos habitantes de Nazaré, e entendeu a solidão de Maria. Naquela mesma noite, escolheu-a como companheira de viagem e mestra de sua fé[4].
Maria é a única que acreditou ¡°em situação de contemporaneidade¡±, isto é, enquanto a coisa estava acontecendo, antes de qualquer confirmação ou convalidação por parte dos eventos e da história8. Acreditou na mais total solidão. Jesus disse a Tomé: Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto! (Jo 20,29): Maria é a primeira daqueles que, sem terem visto, acreditam.
Situação semelhante foi a de Abraão: quando, apesar da idade avançada, foi-lhe prometido um filho, a Escritura diz, quase com ar de triunfo e de maravilha: Abraão teve fé no Senhor, que considerou isso como justiça (Gn 15,6). Com muito maior triunfo, podemos nós agora afirmar isso de Maria! Maria confiou em Deus, e Deus creditou-lhe isso como justiça. É o maior ato de justiça levado a termo na terra por um ser humano, menor apenas que o de Jesus que, porém, é Deus também.
São Paulo afirma que Deus ama quem dá com alegria (2Cor 9,7), e Maria disse o seu ¡°sim¡± a Deus com alegria. O verbo com o qual Maria expressa o seu consentimento, e que é traduzido com ¡°fíat¡± ou com ¡°faça-se¡±, no original está no optativo (génoito); optativo que não expressa uma simples aceitação resignada, mas um vivo desejo. É como se dissesse: ¡°Eu também desejo, com todo o meu ser, o que Deus deseja; faça-se logo o que ele quer¡±. Como dizia Santo Agostinho, ela concebeu Cristo no seu coração antes de concebê-lo no seu corpo.
Maria, porém, não disse ¡°fíat¡±, que é uma palavra latina; nem disse ¡°génoito¡±, que é uma palavra grega. O que ela disse, então? Qual é a palavra que, na língua falada por Maria, corresponde mais de perto a esta expressão? O que dizia um judeu quando queria dizer ¡°assim seja¡±? Dizia ¡°amém!¡±. Se é lícito remontar, com piedosa reflexão, à ipsissima vox, à palavra mesma que saiu da boca de Maria ¨C ou, ao menos, à palavra que estava na fonte judaica usada por Lucas ¨C, essa palavra deve ter sido ¡°amém¡±. Amém ¨C palavra hebraica, cuja raiz significa firmeza, certeza ¨C era usada na liturgia como resposta de fé à palavra de Deus. No fim de alguns Salmos, cada vez que na Vulgata se lê ¡°fíat, fíat¡± (na versão dos Setenta: génoito, génoito), o original hebraico, conhecido por Maria, traz: Amém, amém!
Com o ¡°amém¡±, reconhece-se o que foi dito como sendo palavra firme, estável, válida e vinculante. A sua tradução exata, quando se trata de resposta à palavra de Deus, é a seguinte: ¡°Assim é e assim seja¡±. Indica, ao mesmo tempo, fé e obediência; reconhece ser verdade o que Deus afirma e aceita-o. Significa dizer ¡°sim¡± a Deus. Nesse sentido, encontramo-lo nos lábios de Jesus: ¡°Sim, amém, Pai, porque foi do teu agrado...¡± (cf. Mt 11,26). Aliás, Ele é o Amém personificado: Assim fala o Amém... (Ap 3,14), e é por meio dele que qualquer outro ¡°amém¡± pronunciado na terra sobe agora para Deus (cf. 2Cor 1,20). Como o ¡°fíat¡± de Maria precede o de Jesus no Getsêmani, assim o seu ¡°amém¡± precede o do Filho. Maria também é um ¡°amém¡± personificado para Deus3.
Na esteira de Maria
Como a esteira deixada por um grande navio vai ampliando-se até desaparecer e perder-se no horizonte, mas começa numa ponta, que é a mesma ponta do navio, o mesmo acontece com a imensa esteira dos crentes que formam a Igreja. Começa numa ponta, que é a fé de Maria, o seu ¡°fíat¡±. A fé, juntamente com sua irmã, a esperança, é a única coisa que não começa com Cristo, mas com a Igreja, e, por isso, com Maria, que é seu primeiro membro na ordem do tempo e da importância. O Novo Testamento nunca atribui a Jesus a fé ou a esperança. A Carta aos Hebreus nos dá uma lista dos que tiveram fé: Pela fé, Abel... Pela fé, Abraão... Pela fé, Moisés... (Hb 11,4 ss.). Mas esta lista não inclui Jesus, Jesus é chamado ¡°autor e consumador da f顱 (Hb 12,2), não um dos crentes, nem mesmo o primeiro.
Pelo simples fato de crer, nós nos encontramos, pois, na esteira de Maria e queremos agora aprofundar o que significa seguir de verdade a sua esteira. Lendo na Bíblia o que se refere a Maria, desde o tempo dos Padres a Igreja seguiu um critério que pode ser expresso assim: ¡°Maria, vel Ecclesia, vel anima¡±, Maria, ou a Igreja, ou a alma. Isso quer dizer que tudo quanto a Escritura diz especialmente de Maria, deve ser entendido universalmente da Igreja, e tudo quanto se afirma universalmente da Igreja, deve ser entendido singularmente de cada alma fiel. Atendo-nos também nós a este princípio, vamos ver agora o que a fé de Maria tem a dizer, primeiro, à Igreja no seu conjunto, e depois a cada um de nós, a cada alma em particular. Vamos esclarecer primeiro as implicações eclesiais ou teológicas da fé de Maria, e depois, as pessoais ou ascéticas. Desta maneira, a vida de Maria não serve só para aumentar a nossa devoção pessoal, mas também a nossa compreensão profunda da Palavra de Deus e dos problemas da Igreja.
Em primeiro lugar, fala-nos Maria da importância da fé. Não há som nem música onde não há um ouvido capaz de ouvir, ainda que ressoassem no ar melodias e harmonias sublimes. Não existe graça, ou, ao menos, a graça não pode agir, quando falta a fé que a acolha. Como a chuva nada pode fazer germinar até encontrar uma terra que a acolhe, assim também a graça, se não encontrar a fé. É pela fé que nos tornamos ¡°sensíveis¡± à graça. A fé é a base de tudo; é a primeira e a ¡°melhor¡± obra a ser cumprida. A obra de Deus é esta, diz Jesus: que acrediteis (cf. Jo 6,29). A fé é tão importante porque é a única que conserva à graça a sua gratuidade. Não procura inverter as partes, fazendo de Deus um devedor e do homem um credor. Por isso, a fé agrada tanto a Deus que ele, no seu relacionamento com o homem, faz praticamente tudo depender dela.
Graça e fé: são esses os dois pilares da salvação; são para o homem os dois pés para andar, ou as duas asas para voar. Não são, porém, duas coisas paralelas, como se de Deus viesse a graça e de nós a fé, dependendo assim a salvação, em partes iguais, de Deus e de nós, da graça e da liberdade. Seria um engano se alguém pensasse: a graça depende de Deus, mas a fé depende de mim; juntos, eu e Deus fazemos a salvação! Novamente estaríamos fazendo de Deus um devedor, alguém que, de algum modo depende de nós, e que deve partilhar conosco o mérito e a glória. São Paulo tira qualquer dúvida quando diz: É pela graça que sois salvos, mediante a fé. E isso (isto é, o fato de acreditarmos, ou, mais globalmente, o fato de sermos salvos pela graça através da fé, o que é a mesma coisa) não vem de vós; é dom de Deus! (Ef 2,8ss). Também em Maria, o ato de fé foi suscitado pela graça do Espírito Santo.
O que agora nos interessa é esclarecer alguns aspectos da fé de Maria, que podem ajudar a Igreja de hoje a crer mais plenamente. O ato de fé de Maria é muito pessoal, único e não se pode repetir. Consiste em confiar em Deus e entregar-se completamente a ele. É um relacionamento de pessoa para pessoa. Isto chama-se fé subjetiva. Destaca-se, aqui, mais o fato de acreditar do que as coisas acreditadas. Mas a fé de Maria é também muito objetiva, comunitária. Ela não acredita num Deus subjetivo, pessoal, separado da realidade, que se revela secretamente só a ela. Acredita, pelo contrário, no Deus dos Pais, no Deus do seu povo. Reconhece, no Deus que se lhe revela, o Deus das promessas, o Deus de Abraão e da sua descendência.
Ela se coloca humildemente na fileira dos crentes, torna-se a primeira crente da nova aliança, como Abraão tinha sido o primeiro crente da antiga aliança. O Magníficat está todo cheio desta fé baseada nas Escrituras e de alusões à história do seu povo. O Deus de Maria é um Deus de traços tipicamente bíblicos: Senhor, Poderoso, Santo, Salvador. Maria não teria acreditado no anjo se lhe tivesse revelado um Deus diferente, que ela não pudesse reconhecer como o Deus do seu povo Israel. Também exteriormente, Maria se amolda a essa fé. De fato, submete-se a todas as prescrições da lei; manda circuncidar o Menino, apresenta-o no templo, submete-se ao ritual da purificação, sobe a Jerusalém para a Páscoa.
Agora tudo isso é, para nós, um grande ensinamento. Como a graça, também a fé foi submetida, ao longo dos séculos, a um fenômeno de análise e de fragmentação, surgindo assim inúmeras espécies e ui subespécies de fé. Os irmãos protestantes, por exemplo, valorizam mais aquele primeiro aspecto, subjetivo e pessoal da fé. ¡°Fé ¨C escreve Lutero ¨C é uma confiança viva e audaciosa na graça de Deus¡±; é uma ¡°firme confiança¡±. Em algumas correntes do protestantismo, onde esta tendência é levada ao extremo, como no Pietismo, os dogmas e as assim chamadas verdades de fé não têm quase nenhuma importância. A atitude interior e pessoal para com Deus é a coisa mais importante e quase exclusiva.
Na tradição católica e ortodoxa, pelo contrário, desde a antiguidade deu-se uma importância muito grande ao problema da reta fé ou da ortodoxia. O problema das coisas a serem cridas bem cedo prevaleceu sobre o aspecto subjetivo e pessoal do crer, isto é, sobre o ato de fé. Os tratados dos Padres, intitulados ¡°Sobre a f顱 (De fide), nem mencionam a fé como ato subjetivo, como confiança e abandono, mas preocupam-se com estabelecer, em polêmica contra os hereges, quais são as verdades que devem ser aceitas em comunhão com toda a Igreja. Depois da Reforma, esta tendência ficou mais marcante ainda na Igreja católica, em reação à acentuação unilateral da fé-confiança. Acreditar significa principalmente aderir ao credo da Igreja. São Paulo dizia que ¡°com o coração se crê e com a boca se confessa (cf. Rm 10,10): a ¡°confissão¡± da reta fé prevaleceu frequentemente sobre o ¡°crer com o coração¡±.
Maria leva-nos a reencontrar, também neste campo, ¡°a totalidade¡± que é bem mais rica e mais bela do que qualquer parte considerada individualmente. Não é suficiente ter uma fé apenas subjetiva, uma fé que seja um entregar-se a Deus no íntimo da própria consciência. É tão fácil, por este caminho, reduzir Deus à nossa própria medida. Isso acontece quando criamos uma ideia pessoal de Deus, baseados numa interpretação pessoal da Bíblia ou na interpretação de nosso grupo restrito, e depois aderimos a ela com todas as forças, talvez até com fanatismo, sem perceber que nisso há mais fé em nós mesmos do que em Deus, e que toda essa inabalável confiança em Deus não é senão uma inabalável confiança em nós mesmos.
Nem é suficiente, porém, uma fé só objetiva e dogmática se ela não realizar o contato íntimo e pessoal, entre o eu e o tu, com Deus. Essa torna-se facilmente uma fé morta, um acreditar por pessoa interposta ou por instituição interposta, de tal modo que, tão logo entre em crise por qualquer razão, faz desmoronar o próprio relacionamento com a instituição que é a Igreja. Desta maneira, é fácil que um cristão chegue ao fim da vida sem nunca ter feito um ato de fé livre e pessoal, que é o único a justificar o nome de ¡°crente¡±.
É preciso, pois, acreditar pessoalmente, mas na Igreja; acreditar na Igreja, mas pessoalmente. A fé dogmática da Igreja não anula o ato pessoal nem a espontaneidade do crer; pelo contrário, resguarda-o e permite conhecer e abraçar um Deus imensamente maior que o da minha pobre experiência. De fato, nenhuma criatura consegue abranger, com o seu ato de fé, tudo aquilo que se pode conhecer a respeito de Deus. A fé da Igreja é como uma objetiva grande-angular, que permite fotografar um panorama muito mais amplo do que com uma objetiva simples. Unindo-me à fé da Igreja, faço minha a fé de todos aqueles que me precederam: dos apóstolos, dos mártires, dos doutores. Os Santos, que não puderam levar consigo a fé para o céu, onde já não tem serventia, deixaram-na como herança à Igreja.
Há um incrível poder nestas palavras: ¡°Eu creio em Deus Pai Todo-Poderoso...¡±. O meu pequeno ¡°eu¡±, unido com aquele grande ¡°eu¡± de todo o corpo místico de Cristo, passado e presente, faz ressoar um grito, mais potente que o estrondo do mar, que faz tremer nos alicerces o reino das trevas.
Creiamos também nós!
Vamos considerar agora as implicações pessoais e ascéticas que brotam da fé de Maria. Santo Agostinho, depois de ter afirmado, no texto citado acima, que Maria, ¡°cheia de fé, gerou acreditando, aquele que tinha concebido acreditando¡±, tira uma aplicação prática dizendo: ¡°Maria acreditou e nela realizou-se aquilo que acreditou. Creiamos também nós, para que aquilo que nela se realizou possa ser de proveito também para nós¡±14.
Creiamos também nós! A contemplação da fé de Maria leva-nos a renovar, antes de tudo, o nosso ato pessoal de fé e de abandono em Deus. Daí a importância decisiva de dizer a Deus, uma vez na vida, um ¡°faça-se, fíat¡±, como o de Maria. Quando isso acontece, temos um ato envolto no mistério, porque implica, ao mesmo tempo, graça e liberdade; é uma espécie de concepção. A criatura não pode fazer este ato sozinha; por isso, Deus a ajuda, sem tirar sua liberdade.
O que se precisa, pois, fazer? É simples: depois de ter rezado, para que não seja uma coisa superficial, é preciso dizer a Deus com as mesmas palavras de Maria: ¡°Eis aqui o servo, ou a serva do Senhor: faça-se em mim segundo a tua palavra!¡±. Sim, meu Deus, digo amém a todo o teu projeto, entrego-me a ti!
É preciso, porém, lembrar que Maria disse o seu ¡°fíat¡± no optativo, com desejo e alegria. Quantas vezes repetimos essas palavras num estado de espírito de resignação mal encoberta, como que baixando a cabeça e cerrando os dentes: ¡°Se não há outro jeito, então faça-se a tua vontade!¡±. Maria ensina-nos a dizê-lo de maneira diferente. Sabendo que a vontade de Deus a nosso respeito é infinitamente mais bela e mais rica de promessas do que qualquer projeto nosso, sabendo que Deus é amor infinito que tem sobre nós ¡°projetos de paz e não de aflição¡± (cf. Jr 29,11), como Maria dizemos, cheios de desejo e quase com impaciência: ¡°Seja logo realizada em mim, ó Deus, a tua vontade de amor e de paz!¡±.
Com isso, a vida humana atinge seu sentido e sua mais alta dignidade. Dizer ¡°sim¡±, ¡°amém¡± a Deus, não humilha a dignidade do homem, como às vezes se pensa hoje, mas a exalta. Afinal, qual é a alternativa para este ¡°amém¡± que dizemos a Deus? O pensamento contemporâneo, que fez exatamente da análise da existência o seu objeto primário, demonstrou claramente que é preciso dizer ¡°amém¡±, e se não o dissermos a Deus que é amor, será preciso dizê-lo a qualquer outra coisa que não passa de fria e entorpecedora necessidade: ao destino, à fatalidade.
¡°O meu justo viverá da f顱
Todos precisam e podem imitar Maria na sua fé. Mas, de maneira particular, isto deve ser feito pelo sacerdote e por todo aquele que é chamado, de alguma forma, a transmitir aos outros a fé e a Palavra. ¡°O meu justo viverá da f顱 (cf. Hab 2,4; Rm 1,17): isto vale especialmente para o sacerdote: O meu sacerdote ¨C diz Deus ¨C viverá da fé. Ele é o homem da fé. O peso específico de um sacerdote é dado pela sua fé. Ele vai incidir nas almas na medida da sua fé. O papel do sacerdote ou do pastor, no meio do povo, não é só o de distribuidor de sacramentos e serviços, mas também o de suscitador e testemunha da fé. Ele será realmente alguém que guia e arrasta na medida em que, como Maria, acreditar e entregar sua liberdade para Deus.
A grande e essencial característica, o que os fiéis percebem imediatamente num sacerdote e num pastor, é se ele ¡°acredita¡±: se acredita no que diz e no que celebra. Quem, no sacerdote, procura Deus antes de tudo, percebe isso logo; quem nele não procura Deus, pode ser facilmente enganado e enganar o próprio sacerdote, levando-o a sentir-se importante, brilhante, atualizado, quando na realidade também ele é, como se dizia no capítulo precedente, um homem ¡°vazio¡±. Até o não crente, que se aproxima do sacerdote num espírito de procura, percebe logo a diferença. O que vai provocá-lo e pô-lo em crise salutar, não são geralmente as discussões mais eruditas sobre a fé, mas a simples fé. A fé é contagiosa. Ninguém é contagiado por ouvir falar de um vírus ou por estudá-lo, mas somente entrando em contato com ele; o mesmo acontece com a fé.
A força de um servo de Deus é proporcional à força da sua fé. Às vezes sofremos, e talvez até nos queixamos com Deus na oração, porque as pessoas abandonam a Igreja, continuam no pecado, porque falamos, falamos e nada acontece. Um dia, os apóstolos tentaram expulsar o demônio de um pobre rapaz, mas não conseguiram. Depois que Jesus expulsou o mau espírito do rapaz, eles se aproximaram de Jesus e perguntaram: Por que nós não conseguimos expulsar o demônio? Jesus respondeu: Porque a vossa fé é demasiado pequena (Mt 17,19-20).
O mundo, dissemos, é sulcado como o mar pela esteira de um belo navio, a esteira de fé aberta por Maria. Entremos nesta esteira. Creiamos também nós, para que se realize também em nós o que nela se realizou. Invoquemos Nossa Senhora com o doce título de Virgo fidelis: Virgem crente, rogai por nós!
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[1] [1] H. Schürmann, Il Vangelo di Luca, Paideia, Brescia 1983, p. 154.
[2] Orígenes, Comentário ao evangelho de Lucas, fragm. 18 (GCS, 49, p. 227).
[3] S.to Ireneu, Adv. Haer III,22,4.
[4] C. Carretto, Beata te che hai creduto, Ed. Paoline, 1986, p. 9ss.
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