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Paradoxal realeza

A festa de Jesus Cristo Rei do Universo foi institu¨ªda por Pio XI em 1925, ocasi?o em que se comemoravam os 1.600 anos do Conc¨ªlio de Niceia, que havia declarado a ¡°divindade do Filho¡± como dogma de f¨¦.

Geraldo De Mori,- Religioso Jesuíta

¡°Então o Rei dirá aos que estiveram à sua direita: Vinde benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo¡­¡± (Mt 2535).

O ciclo litúrgico da Igreja católica termina com a festa de Cristo Rei do universo. Embora a realeza seja minoritária no mundo atual, durante séculos ela foi a forma de governo de muitos povos e nações. Também no seio do povo eleito, segundo o livro de Samuel (1Sm 8), ela foi instituída, inicialmente a contragosto do profeta, para o qual, fiel à experiência fundante de Israel, Deus era o único rei. Apesar de certo ¡°fracasso¡± na primeira tentativa, com Saul, a unção de Davi como rei tornou-o o modelo ideal a partir do qual a realeza foi vista no seio do povo de Deus, com muitas decepções, mas enquanto figura, o rei era visto como ¡°ungido¡± (messias) de Deus, e por isso mesmo, aquele que deveria encarnar o cuidado do próprio Deus para com seu povo, sobretudo para com os que, em seu seio, eram os mais vulneráveis: viúvas, órfãos e estrangeiros. A queda do reino de Israel, com o exílio a Nínive, e do reino de Judá, com o exílio para a Babilônia, e a transformação do país em colônia das grandes potências coloniais (Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma), foi ao mesmo tempo frustrando a esperança da restauração do reinado de Deus, mas também alimentando-a, ¡°contra toda esperança¡±.

O discurso inaugural de Jesus, segundo o evangelho de Marcos, revisita esta capacidade infinita de espera em Israel: ¡°cumpriu-se o tempo, e está próximo o reino de Deus¡± (Mc 1,15). Sua ação levantou no meio de seus seguidores e das multidões a expectativa de que ele seria o messias enviado por Deus, mas, como ele diz a Pilatos, o seu reino ¡°não é deste mundo¡± (Jo 18,36). Isso não significa que sua pregação e ação não tivessem nada a ver com o que acontecia na história de Israel ou com a história do mundo. Pelo contrário, sua pregação era um convite claro a uma conversão que implicaria em mudanças com consequências importantes na vida das pessoas: curas, exorcismos, acolhida dos pecadores. A cura alivia a dor e a angústia que ela desperta. A expulsão de satanás indica que seu reinado não é absoluto, que é possível combatê-lo. A acolhida de pecadores, expressa nas refeições que partilhava com eles, indica que o reinado de Deus emerge transformando relações, dando lugar nas mesas a quem não tinha direito, seja porque de fato eram culpados, seja porque eram vistos como culpados.

Em sua entrada em Jerusalém Jesus é aclamado rei, Filho de Davi, o rei mais querido na história do povo eleito. Mas seu reinado, que ¡°não é deste mundo¡±, possui uma outra lógica que a lógica experimentada pelo povo de Israel em sua história. Essa lógica é curiosamente recolhida nos três evangelhos escolhidos pela liturgia da Igreja para celebrar esta festa. No evangelho do Ano A, por exemplo (Mt 25, 31-46), o texto escolhido é o do juízo final, no qual o Filho do Homem, quando vier em sua glória, se assenta num ¡°trono glorioso¡± como juiz universal, separando as pessoas de todas as nações, colocando de um lado as ¡°ovelhas¡± e do outro os ¡°cabritos¡±. Aos primeiros dirá: ¡°Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo¡± (Mt 25,34). A razão deste convite é que os que comporão esse grupo deram comida, água e roupa a quem estava com fome, com sede ou nu, acolheram o estrangeiro, visitaram os que estavam doentes ou na prisão. Os que não foram capazes de realizar esses gestos diante dessas situações, os que estarão do lado dos cabritos, serão condenados ao ¡°castigo eterno¡±, enquanto os justos irão para a vida eterna (Mt 25,46). No Ano B (Jo 18,33b-37), o texto joanino proposto, traz o episódio do julgamento de Jesus diante de Pilatos, que lhe pergunta se ele é o rei dos judeus, à qual Jesus responde: ¡°Dizes isso por ti mesmo ou outros te disseram isso de mim?¡± (Jo 18,34). Pilatos recorda que ele não é judeu e que o povo e os chefes o entregaram para que ele fosse julgado. Jesus então lhe responde que seu reino não é deste mundo. Pilatos lhe pergunta de novo, ¡°então és rei?¡± e Jesus lhe diz ¡°Tu o dizes, que eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo o que é da verdade, escuta a minha voz¡± (Jo 18,37). Portanto, o rei segundo o evangelho joanino é Jesus portador da verdade. No evangelho do Ano C (Lc 23,35-43), o episódio proposto é o do escárnio dos soldados, que, após oferecerem ao crucificado vinagre dizem ¡°Se és o rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo¡± (Lc 23,37). O texto ainda lembra que acima da cabeça do crucificado estava a inscrição ¡°Este é o rei dos Judeus¡± (Lc 23,38), terminando com a demanda do ¡°bom ladrão¡±, ¡°lembra-te de mim, quando entrares no teu reino¡± (Lc 23,42).

A festa de Jesus Cristo Rei do Universo foi instituída por Pio XI em 1925, ocasião em que se comemoravam os 1.600 anos do Concílio de Niceia, que havia declarado a ¡°divindade do Filho¡± como dogma de fé. Segundo o Papa, essa declaração apontava também para a realeza de Cristo, que merecia ser celebrada com uma festa solene. O sentido profundo desta realeza, segundo os textos propostos pela liturgia, não é o de uma identificação de Cristo com as realezas presentes na história e ainda hoje em alguns países. Trata-se de uma realeza que identifica em cada rosto maltratado ou submetido a todo tipo de humilhação a própria figura do humilhado da cruz do Gólgota. E nessa figura encontra-se, segundo a afirmação paradoxal do evangelho joanino, ¡°o humano¡± (Ecce homo, Jo 19,5). Certamente é um rosto desfigurado, como os rostos dos humilhados da parábola do evangelho de Mateus, famintos, sedentos, nus, peregrinos, aprisionados, enfermos. Onde há atentado à dignidade humana, esse rosto recorda a solidariedade do ¡°rei¡± eterno com os que dela são privados, mas também, os gestos de reconhecimento, feitos pela acolhida, serviço, solidariedade, caridade, defesa. O rei exaltado é o que define que a verdade que ele mesmo encarna é justamente a verdade que consegue ver naquilo que lhe é oposto, a humilhação, a imagem divina esmagada e necessitada de ser resgatada. Nesse sentido, o rei dos judeus, não é aquele que quer salvar-se a si mesmo, mas que aceita perder-se para salvar os condenados, levando-os ao ¡°paraíso¡±, ou seja, ao ¡°seu reino¡±, mostrando-lhes que por pior que sejam ou que tenham sido seus crimes, Deus sempre está disposto a acolhê-los, pois não quer que ninguém se perca (Mt 18,14).

Celebrar Jesus Cristo Rei do Universo, por mais que possa remeter a glória e a brilho, na verdade é lembrar que sua realeza passa pela humilhação, e que na vida de quem a acolhe ela deve traduzir-se em serviço, compaixão, solidariedade com todos os tipos de situações em que há atentado ao humano e à sua dignidade, ou seja, a tudo aquilo que não é realeza, e que a tradição teológica identificou como ¡°imagem divina¡± no humano. Jesus é a imagem verdadeira da humanidade mais plenificada, que não só quer restaurar em cada rosto desfigurado esta imagem, mas indica o caminho a partir do qual seus discípulos e discípulas devem pensar a própria realeza. De fato, tudo o que se diz dele em sua humanidade se deve dizer dos que a partir dele compreendem suas próprias vidas. Nesse sentido, ser conformado e configurado à sua imagem é ser capaz de revestir-se desta realeza paradoxal, que mais que ¡°pompas e circunstâncias¡±, reveste-se de seu manto de servidor, que lava os pés do humano ferido, resgatando sua realeza escondida nas humilhações da vida, ou desfigurada pelas injustiças inúmeras da história.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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25 novembro 2023, 13:28