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Catedral de Maputo Catedral de Maputo  (P. Tony Neves)

Mo?ambique nos olhos de Mia - Cr¨®nica do P. Tony Neves

Aterrei em Maputo numa manh? quente, depois de sair gelado de Lisboa e ter, em Luanda, experimentado apenas o ar condicionado do aeroporto. Mo?ambique est¨¢ a bra?os com uma crise pol¨ªtica e social que ¨¦ rescaldo das elei??es cujos resultados n?o foram aceites pela oposi??o. As muitas manifesta??es, regra geral violentas, que marcaram os ¨²ltimos tempos, criaram instabilidade e aumentaram o mal-estar social que tem perturbado a vida j¨¢ t?o sofrida das popula??es mais fr¨¢geis deste pa¨ªs lus¨®fono.

P. Tony Neves - Maputo

Cheguei, mais uma vez, com uma enorme vontade de abraçar os meus irmãos missionários, que aqui partilham a sorte e a má sorte deste bom povo, tão martirizado ao longo da história, hoje a viver tempos dramáticos e ainda sem ver grandes luzes no fundo do túnel.

Nos dias que precederam esta viagem, tive a alegria de ler o último romance de Mia Couto, o escritor-biólogo que mostra Moçambique ao mundo e que inspira quantos o leem. ¡®A Cegueira do Rio¡¯, leva-nos até ao norte do país, onde o enorme Rovuma faz fronteira com a Tanzânia. Mia Couto transporta-nos até ao longínquo 1914. O autor é de opinião que o assalto alemão, a partir da Tanzânia, que matou 12 pessoas no posto militar português de Madziwa, está na origem da Primeira Grande Guerra Mundial no continente africano. O romance evoca ainda a ¡®Revolta dos Maji-Maji¡¯, realizada entre 1905 e 1907 contra a cultura forçada do algodão, onde as tropas alemãs mataram entre 200 e 300 mil camponeses! Mas que massacre tão abominável! Na nota final do livro, o autor lembra que, segundo números oficiais de 1919, as campanhas africanas desta Guerra provocaram 148 212 mortos, só em Angola e Moçambique!

Mia Couto habituou-nos à sua escrita criativa, mas também a uma reflexão sobre a humanidade e as atitudes que põem em causa a dignidade e os direitos das pessoas. A obra divide-se em 14 capítulos e 93 números. Tem diversos protagonistas que, em muitos momentos, falam na primeira pessoa. Cada um dos números começa com uma citação de um autor ou um provérbio. Para não contar a história e não estragar a leitura deste romance, limito-me a provocar os ouvintes e leitores com frases que destaquei deste novo livro, nascido em terras de Moçambique: ¡®Em África o chão é muito antigo, mas os caminhos são sempre recém-nascidos. A razão é simples: os carreiros desaparecem na estação das chuvas¡¯ (p.22); ¡®Ninguém pode viajar sem visitar as pessoas. Os que moram no caminho são o próprio caminho¡¯ (p.41); ¡®A grande questão para quem foge não é o destino. É até quando terá de fugir¡¯ (p.42); ¡®O que mais me tira o sono é saber que os que mandam em tudo já perceberam que não têm o controlo de nada¡¯ (p.80); ¡®Em África tudo é caminho. Porque tudo termina e tudo começa em cada estação do ano¡¯ (p.86); ¡®Não sabem que, em certos lugares, partir é uma sentença e voltar é um milagre¡¯ (p.106); ¡®O passado já não existe. Não existe nem para te proteger, nem para me ameaçar¡¯ (p.107); ¡®Escreve mesmo depois de deixar de haver palavras¡¯ (p.108); ¡®Quem não respeita as mulheres não pode amar nem ser amado pela vida¡¯ (p.109); ¡®Os bichos são iguais às pessoas: os que não pedem favores são donos da sua vida¡¯ (p.120).

¡®Os sentimentos são como roupa a secar ao sol: apenas os pobres exibem essas intimidades em público¡¯ (p.124); ¡®Ao escrever, ele voltava a pôr o mundo em ordem¡¯ (p.125); ¡®Há três modos de sair da guerra: morto, herói ou sobrevivente¡¯ (p138); ¡®Agora tenho de descansar. Foi tanta viagem que os meus pés ganharam alergia ao chão¡¯ (p.141); ¡®São precisas duas pessoas para que haja silêncio¡¯ (p.148); ¡®Que um rio só é eterno porque vive de outras águas. Solitários, os rios adoecem¡¯ (p.148); ¡®Um soldado olha o mundo devagar. Sabe que pode ser a última vez¡¯ (p.152); ¡®Ninguém vai para a guerra. Estamos dentro dela, sem darmos conta¡¯ (p.160); ¡®Vocês europeus dançam aos pares. Nós dançamos com o mundo inteiro¡¯ (p.185); ¡®Deixei para o fim a doença que mais me intrigava: a cegueira dos rios¡¯ (p.222); ¡®Nas grandes tragédias, quando as vítimas são demasiadas. Ninguém se dá ao trabalho de as contar. E o que não se pode contar converte-se em nada¡¯ (p.226); ¡®A vida é uma corda sem ponta: água numa extremidade e areia na outra¡¯ (p.252); ¡®És descendente de um grande combatente. O teu pai deu a vida pela vida dos outros¡¯ (p.313); ¡®Lavámos os rios, apagámos as cinzas, desamarramos as nuvens¡¯ (p.318).

Aqui, por terras moçambicanas, partilharei este tempo de Advento e o Natal. Os Espiritanos vivem e trabalham em cinco dioceses, com missões nas periferias de cidades e também em comunidades do interior. Semana após semana, Lusofonias vai amplificar o que eu vir, ouvir, sentir e viver.

 

 

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11 dezembro 2024, 10:07